Tocando, confeccionando e ensinando pífano há mais de 60 anos, Zé do Pife é um dos mestres de cultura popular mais respeitados no DF

Por Victoria Almeida e Guilherme Martins

Foi com o talo de uma abóbora, ou jerimum, como é conhecida no nordeste, que Francisco Gonçalo da Silva construiu entre os 7 e 8 anos de idade o primeiro pífano, uma pequena flauta transversal feita, tradicionalmente, de bambu. As habilidades com o instrumento o fazem ser conhecido até hoje, prestes a completar 70 anos, como Zé do Pife, um dos mestres de cultura popular mais respeitados no Distrito Federal. O pernambucano, filho de agricultores e natural de São José do Egito, tem uma trajetória marcada por muito trabalho, andanças pelo país e o principal: a paixão por compor, tocar e ensinar a arte do pife. “Eu divirto o público e me divirto também, porque o artista se diverte com a arte dele. A cultura é alegria”, ensina.

A ideia de construir o próprio pífano foi inspirada por bandas de pife que se apresentavam nos meses de maio a julho no interior de Pernambuco. Na época, os grupos se apresentavam em festas juninas ligadas a comemorações religiosas, em devoção a São Pedro, São João e Nossa Senhora e ainda durante novenas ocorridas no “derradeiro de maio”, como o mestre Zé do Pife se refere ao último dia do mês. As bandas visitavam as casas recolhendo “prendas” para os leilões. Zé do Pife, ou Tide, como era conhecido na infância, encantava-se pelo som do pífano e observava atento, junto a seu irmão Zeca, um dos oito filhos do casal de agricultores, a forma como os “pifero véi” tocavam o instrumento. “Eu e meu irmão ficávamos só olhando o jeito deles soprarem o pífano, o modo deles baterem com o dedo no furo. O pife tocado sozinho é muito bonito, mas quando tocado por uma dupla fica mais bonito, porque tem a primeira e segunda voz, tipo música sertaneja”, relembra.

Mesmo sem ajuda para aprender a tocar o pife, Tide e Zeca decidiram ir às casas de doceiras de jerimum e pegar talos da verdura para construir o próprio pífano. “Fizemos por nossa conta, sem ter explicação dos ‘pifero véi’. A gente ia praticando devagarzinho e quando murchava, a gente fazia outro”, comenta. Como autodidatas, Zé do Pife e o irmão aprenderam inicialmente músicas simples apenas escutando e assistindo às apresentações das bandas.

Cerca de três anos mais tarde, quando Tide completara 11 anos e Zeca 13, os pifeiros da cidade os presentearam com um pequeno pífano, feito de taboca (bambu). O talento e a determinação dos irmãos também não passaram despercebidos pela família. O avô, Pedro Ferreira da Costa, empolgado com a perspicácia dos netos, decidiu formar uma banda com os familiares: a Banda de Pife de Riacho de Cima. Tide e Zeca tocavam o primeiro e segundo pífano, respectivamente. Pedro tocava zabumba. Heleno, o irmão caçula, os pratos, e os tios Torcatiu e Luis o triângulo e a caixa. “Os chefes de família que faziam festas em casa, nas cidades e nos ‘apovoados’, deixavam de chamar os ‘pifero véi’, que tocavam muito bem – até hoje eu lembro – para chamar a gente, porque a gente era criança e chamava a atenção do povo, porque era pequenininho”, relata.

Pelo sertão nordestino

Com quase 20 anos de idade, Zé do Pife decidiu sair da casa dos pais em busca de salários melhores, tocando pífano. Chegou a passar cerca de três meses nos municípios Palmares, em Pernambuco e Erecê e Paulo Afonso, na Bahia. “Recebia o mesmo salário de Chico Anísio”, brinca, sobre o pagamento que recebeu nas regiões. Voltou à casa dos pais e decidiu, então, que só viajaria novamente se fosse a uma cidade grande, onde houvesse maiores oportunidades de ganhar dinheiro. Dois anos mais tarde, em 1973, aos 22 anos, rumou para São Paulo.

Ao chegar à grande capital, trabalhou na construção civil, em empresas como a Construtora Delta e a Racional. Mesmo emprenhado em trabalhar nas obras, Zé do Pife relata que não desistiu da música e pedia permissão a fazendeiros e donos de chácaras para pegar bambus e fabricar pífanos, que vendia nas ruas e praças paulistas. Tocando músicas de diversos compositores, ele ganhou o apelido pelo qual é chamado até hoje, que lhe foi dado em homenagem a João do Pife de Alagoas. “Não nasceu e parece que não vai nascer um tocador de pife para tirar João do Pife de Alagoas. Tem muitos pifeiros bons no Brasil, e eu gosto muito das músicas, porque é a minha função e toda vida eu achei bonito, mas para tirar João do Pife de Alagoas é difícil. Então eu aprendi a tocar umas musiquinhas dele e sempre saí por aí vendendo os meus pifes numa sacolinha e aí o povo ficava me chamando de Zé do Pife. E pegou”, conta.

Trabalhando na construção do metrô do município de Jabaquara, ele construiu um pífano feito de cano de PVC e, enquanto trabalhava nas obras, não deixava de tocar canções, o que chamou a atenção dos colegas de trabalho. Certo dia, um dos trabalhadores da obra lhe deu uma sugestão que levaria seu trabalho a ser conhecido por todo o Brasil: se apresentar no palco do show de calouros de Sílvio Santos.

 

Das ruas aos palcos

“Eu nem sabia o que era uma emissora de rádio e televisão”, conta Zé do Pife enquanto relembra o receio que sentiu, de se apresentar no programa. Ele relata que depois de muita insistência dos mestres de obras do metrô e outros colegas decidiu que iria se inscrever no show de calouros. “Eu pensei: sabe de uma coisa? Medo é manha e eu vou enfrentar”.

Zé do Pife fez a inscrição no programa em uma segunda-feira, no entanto, passaram-se três domingos e ele não foi chamado a se apresentar. Resignado, já havia desistido da ideia quando finalmente recebeu um telegrama com um convite. Ele conta que compareceu em vários domingos, nos bastidores do programa, mas que sua vez demorara a chegar. Ainda assim, não desistiu da apresentação. “Quando pensei que não, ele [Sílvio Santos] me chamou. Quando cheguei lá, ele falou comigo, perguntou de onde eu era e o que eu iria tocar e eu falei. Acho que era até uma música do Trio Nordestino”, relembra.

Mas o palco de Sílvio Santos não foi o único a presenciar o som do pífano de seu Zé. Ele se apresentou ainda nos programas de calouros de Raul Gil, Barros de Alencar e Chacrinha. “Ele botava aquela buzina no ouvido da gente que era para modo de a gente ficar nervoso, ter medo e errar”, relembra Zé do Pife, sobre as brincadeiras do Velho Guerreiro. “Mas o povo da obra assistiu e me disse depois que ele buzinou, e mesmo assim eu toquei bonitinho”, comenta entre risos.

 

Rumo à capital federal

Foi em 1992 que Zé do Pife decidiu conhecer Brasília. Chegando à capital trabalhou na empresa Delta Engenharia, mas conta que não chegou a ficar um ano empregado no local, pois a empreiteira demitiu grande parte dos funcionários. “Eu achei foi bom, porque aí eu podia fazer os meus pifes para vender. Posso estar no Brasil ou no exterior: confio primeiramente em Deus e em segundo na arte que ele me confiou, nesse dom de aprender e de tocar música”, afirma.

Zé do Pife morou em diversas regiões no Distrito Federal, entre elas no Parque da Barragem, em Ponte Alta do Gama e em Ceilândia Sul, local que vive até hoje e se sustenta a partir da confecção de pife e aulas do instrumento. “Sempre quando é para começar a nossa vida, a gente sofre um pouco. Eu sou filho de gente pobre. Meus pais não puderam educar os filhos, então, eu não tive leitura. Mas, o que eu faço das minhas músicas, de minha autoria, e músicas de outros artistas é aprender de ouvido, eu escuto e gravo na minha mente. É difícil, mas faz parte da arte daquela pessoa e do que ele quer viver”, diz.

Conhecer o centro da capital para depois explorar seus arredores é um hábito adotado por ele para compreender o funcionamento das regiões visitadas. A Rodoviária do Plano Piloto, a Esplanada dos Ministérios, o shopping Conjunto Nacional e o Conic foram os locais mais visitados por Zé do Pife, quando chegou a Brasília. A partir de dicas de conhecidos nas ruas, enquanto caminhava nas entrequadras vendendo, tocando e dando aulas rápidas de pífano, ele conheceu a Universidade de Brasília (UnB) onde foi convidado a oferecer oficinas de pife, em 2007. Desde então, Zé do Pife é “professor universitário”. “Quando uma pessoa aprende a tocar eu choro de alegria. Eu tenho prazer de ensinar, porque não quero que isso acabe”, comenta.

Entre as músicas aprendidas pelos alunos estão as clássicas Asa Branca, A Volta da Asa Branca e Juazeiro, do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Também Maria Bonita e Mulher Rendeira, de Lampião, e duas músicas próprias, O Grito do Cachorro com a Onça e Caboré, em homenagem à ave do Nordeste, semelhante à coruja.

 

As Juvelinas

As aulas de pífano na UnB deram frutos. Há cinco anos, seu Zé do Pife montou uma banda com nove alunas. O grupo, “Mestre Zé do Pife e as Juvelinas”, se apresenta em ocasiões como em festas, casamentos, churrascos, forrós, e outros diversos eventos. “Não existe mais de oito pessoas numa banda de pife. São sempre 4, 6 ou 8. E na minha tem 10, (9 mulheres e ele) porque elas são todas inteligentes e eu tive dó de deixar duas ou três fora. Mas eu disse para elas ficarem, porque o cachê é pequenininho, mas o pouco para Deus é muito”.

Além das oficinas na UnB e contar com um CD lançado com a banda, Zé do Pife pretende cair na estrada mais uma vez e viajar por estados do Nordeste, apresentando seu trabalho.

Casado e pai de quatro filhos, Zé do Pife prova ser possível viver sem desistir do sonho: difundir a cultura popular por meio da musicalidade do pífano. “A música é alegria pra todos nós”, afirma.

 

Oficinas de Pífano com Mestre Zé do Pife

Inscrições abertas de 15 a 19 de abril

Aulas de 23 de abril a 20 de junho (20 encontros)

Duas turmas disponíveis: segunda e sexta-feira das 12h30 às 14h

Apresentação final no dia 25 de junho

Local de inscrição: Núcleo Sonoro da Universidade de Brasília (UnB), sala BT 240

Telefone para contato: 3107 .6304

 

Mestre Zé do Pife e as Juvelinas

Contato: (61) 9656 – 9306

Facebook: Mestre Zé do Pife e as Juvelinas (página) e Zé do Pife Juvelinas (perfil)