Tudo começou dentro dos processos criativos da Oficina Mulheres Brincantes, um espaço de acolhimento e criação artística entre mulheres e em toda a sua diversidade, criado por Luciana Meireles, em 2015. A oficia é um transbordamento de vivências dentro das brincadeiras e encantarias tradicionais afro-indígenas brasileiras.

Em 2019, os caminhos da oficina se cruzaram com a Mestra Tamatatiua Freire, do Bumba Meu Boi de Seu Teodoro, na Associação de Mulheres de Sobradinho II, na realização do projeto de criação do Bumba Maria Meu Boi, uma brincadeira só de mulheres inspirada na tradição do Bumba Boi do Maranhão. Um convite feito por Steffanie Oliveira, por meio do Instituto Rosa dos Ventos. Foi uma jornada marcada por muitos desafios, desde a pandemia até o contexto de mulheres em situação de vulnerabilidade e vítimas de violência doméstica, refletindo a potência do brincar como ferramenta de empoderamento social e político.

Também em 2019, realizamos o 1º Solares Brincantes, a convite do artiste Francisco Rio, numa empreitada que encheu o teatro do Espaço Cultural Renato Russo, apresentando criações inéditas de quatro brincantes da cidade. O evento abriu caminhos para a apreciação de invenções originais dentro da linguagem tradicional dos teatros e das danças populares, revelando a necessidade da criação de um brinquedo coletivo que demarcasse o protagonismo feminino e das diversidades de gênero nas ditas “culturas populares” da cidade, bandeira que a coletiva Casa Moringa levanta desde 2011.

A vivência com o Bumba Maria Meu Boi trouxe também uma provocação: Como uma brincadeira tão marcada pela vivência dos povos originários da floresta, com suas danças, cantos e estética visual, faz referência ao animal trazido pelo colonizador europeu e não faz referência a nenhum bicho da fauna originária das Américas? O tambor onça faz parte da brincadeira, com seu urro forte e bem marcado. Mas, se temos a memória do som da onça, por que não ter a figura dela na roda? Essas foram algumas das perguntas geradoras do processo de investigação.

Isso resultou numa ampla pesquisa por estudos, mitos e referências de tradições que carregam a presença de outros animais como símbolo. Chegamos nas histórias ancestrais do povo Tikuna, do interior do Maranhão ,e do povo Xacriabá, do sertão de Minas Gerais, onde a onça se apresenta como força encantada ligada ao ritual de iniciação das mulheres. Histórias e tradições que foram violentamente apagadas dentro do processo da colonização e desqualificadas como “folclore” e “cultura popular”, diminuindo seu valor cultural enquanto identidade, ciência, conhecimento e cultura de nações que cultivam as florestas dessa terra.

A partir daí, um religamento do fio da memória começou a acontecer, no estudo de diversas brincadeiras tradicionais onde encontramos a presença da onça, seja como máscara, boneco ou cantiga. A exemplo: o cavalo marinho, reisado, samba de roda, capoeira, etc. E assim fomos aprofundando o sentido da onça, não só como animal, mas como um arquétipo ancestral ligado à força das florestas tropicais e ao povo guerreiro e trabalhador. Imagens herdadas desde os impérios maias e astecas até as ciências da jurema sagrada no Brasil.

CARAVANA DAS ALEMBRANÇAS

E fomos em busca das raízes do brinquedo… Em 2021, partimos na Caravana Das Alembranças pelo nordeste brasileiro, em busca de mestras de brinquedos tradicionais para uma troca de saberes e histórias que dessem sustentação à ideia de criar uma brincadeira onde a onça fosse o símbolo comunitário. Evocamos a retomada das identidades originárias invisibilizadas em nossa própria ancestralidade e no território da nossa cidade tão marcada por fluxos migratórios.

Na Bahia, convivemos e brincamos com Lillian Pacheco (Pedagogia Griô), em Lençóis, e com Mestra Nenete, Tunga e Dinda, puxadoras do Terno de Rosas da Gamboa, na Ilha de Itaparica. Em Pernambuco, na passagem por Condado, ouvimos de Mestra Nice (Cavalo Marinho Estrela Brilhante) que no tempo dos antigos se brincava a figura da onça, mas conforme as onças foram sumindo da Zona da Mata, que teve a floresta derrubada pelos canaviais, a onça também foi esquecida no brinquedo.

Foi no Quilombo da Liberdade, no Maranhão, junto à Mestra Nadir (Bumba Meu Boi da Floresta de Mestre Apolônio), que nos reencontramos com a onça brincante, saindo como figura, dançando e cantando para acompanhar o Boi. Nadir nos contou que essa memória vem do interior, das regiões onde ainda se vive em relação com a floresta e onde os povos índigenas têm sua voz legitimada. No retorno ao DF, também ouvimos as histórias contadas nas cavalhadas de Pirinópolis e de Corumbá de Goiás, que também dão notícias de onças brincantes mascaradas.

Assim, reunimos novamente o grupo das Oficinas Mulheres Brincantes, com a proposta de aprofundar estudos de criação de cena e performance em torno do arquétipo ancestral da onça. Juntas, vislumbramos a montagem de um espetáculo-brincadeira feito por mulheres. A partir da estrutura das brincadeiras tradicionais que vivenciamos, e recebendo recados e bençãos da encantaria, recriamos um ritual próprio em torno da onça, com os cordões de figuras bailantes, música ao vivo, dança, brincadeiras e interação com o público.