Zona da Mata de Pernambuco, território de encantarias e folguedos que fazem o coração pulsar mais forte, o corpo brincar e os pés dançarem trupés que muito nos revelam sobre como pisar no chão desse pedaço de Brasil. Lá, a Caravana das Alembranças realizou mais um pouso para contar a história de Onça Yaya e ouvir novas encantações. Dessa vez, fomos ao encontro de Mestra Nice Teles, do Cavalo Marinho Estrela Brilhante (Condado), e das mulheres do Maracatu Coração de Nazareno (Nazaré da Mata).
Atravessamos canaviais e tempos pandêmicos, moramos um mês em Condado, demos nossos pulos nas praias próximas da Paraíba e presenciamos um pouquinho do que faz a Zona da Mata ser referência e raiz para as culturas populares do Brasil, com seus cavalos marinhos, maracatus, cocos, cirandas e outras invenções que nutrem de alegria e sentindo todo o povo de um território marcado pela monocultura da cana.
Na Zona da Mara, realizamos duas apresentações do espetáculo “A fabulosa história da onça alembrada”. A primeira foi no dia 22 de janeiro, em Condado. Lá, brincamos para um público reduzido, formado pela comunidade e pelas crianças que participam das oficinas de Cavalo Marinho com Mestre Nice Teles e família. A segunda apresentação ocupou a Associação das Mulheres de Nazaré da Mata, no dia 27 de janeiro, onde brincamos para um público fechado, formado por crianças e famílias atendidas pela colônia de férias da associação.
CONDADO: MESTRA NICE TELES E O CAVALO MARINHO ESTRELA BRILHANTE
A chegada da Caravana das Alembranças em Condado veio acompanhada de um precioso presente: a sambada de aniversário de Mestre Nice Teles, do Cavalo Marinho Estrela Brilhante. A cidade é um dos sete principais mucípios que concentram grupos de Cavalo Marinho na região. A sede de Mestra Nice fica no bairro Novo Condado e é chamada de Espaço Tradições Culturais Cavalo Marinho Estrela Brilhante. Por lá, presenciamos o folguedo até o sol raiar, celebrando os 53 anos da única mulher reconhecida como mestra de Cavalo Marinho na região e no Brasil. Além da sambada, conhecemos de perto seu trabalho como brincante e educadora popular e aprofundamos nas prosas sobre ser mulher dentro das culturas populares, com todos desafios que ainda atravessamos para ser quem somos e brincar onde quisermos.
Nossos agradecimentos à Mestra Nice Teles, Natan Teles e Nego Él, por todas as prosas, brincandeiras e compartilhamentos do Cavalo Marinho. A Mestre Zé Mário, por abrir caminhos para a nossa hospedagem em Condado. A Sergio Ricardo e Tayná Nunes, pelos registros fotográficos e à Emanuella Tarquínio, por nos acolher em Aracaju na travessia entre Bahia e Zona da Mata.
Mestra Nice
Mulher brincante, cantadeira e dançarina de Cavalo Marinho e dama do paço no Maracatu Rural. Mestra Nice Teles é artista popular de origens afro-indígenas. Nasceu e foi criada na Zona da Mata de Pernambuco e desde os 8 anos de idade já acompanhava os folguedos populares de Condado, cidade onde mora. Seu pai, Mestre Antônio Teles, era cortador de cana e também brincava Cavalo Marinho desde criança como rabequeiro e “Mateus”. Em 2004, antes de fazer a passagem para outros mundos, Antônio Teles criou seu próprio brinquedo, o Cavalo Marinho Estrela Brilhante, que hoje segue sob o comando de Mestra Nice.
Entre compromissos de família e de fé, Nice Teles mantém o passo firme e a tradição viva, seguindo à frente do Centro Tradições Culturais Cavalo Marinho Estrela Brilhante, em Novo Condado. Nesse pequeno espaço, realiza as tradicionais sambadas e um importante trabalho de base com as crianças da comunidade, contribuindo para a continuidade da tradição entre as novas gerações. Durante todo o ano, a partir do projeto “Cavalo Marinho Estrelas do Amanhã”, são ofertadas aos jovens oficinas que percorrem a teatralidade das figuras, poesia e dramatização, dança e expressões corporais, cantos e musicalização.
Um dos principais apoiadores do projeto é Natan Teles, um dos filhos de Mestre Nice, representando a terceira geração de brincantes na família. Jovens que foram formados no Centro Tradições Culturais também reforçam a continuidade das oficinas e do folguedo, como o brincante Nego El e seu irmão Kaká Rabequeiro.
O Cavalo Marinho e a resistência do povo da Zona da Mata
Pernambuco é o quarto estado com o maior número de populações indígenas do Brasil. As manifestações culturais brincadas na região são baseadas nos rituais e festas dos povos originários que o colonialismo e o capitalismo hegemônico trabalham para invisibilizar e dizer que não existem mais.
Todo esse território era e ainda é ocupado por grandes nações: Xucurus, Potyguaras, Kapinauás, Fulniôs, Pankararus, Kariris Xocó e tantos outros. São milhares de pessoas em disputa por suas terras, línguas, identidades e memórias. O projeto de Estado Nação Brasileira trabalhou por séculos para criar o sentimento de “ninguentude”: uma massa anônima miscigenada, sem herança e sem memória, uma mão de obra escravizada a ser continuamente explorada na lógica dessa absurda pirâmide social imposta.
O que está por detrás de uma brincadeira de Cavalo Marinho é uma guerra territorial simbólica. Tanto o Cavalo Marinho quanto o Maracatu Rural da Zona da Mata é uma batalha no imaginário popular pela afirmação das identidades indígenas e negras invisibilizadas dentro da região. Ainda que os próprios brincantes, por vezes, também se esqueçam disso, as figuras, os cantos, as danças e toda a ritualística da festa não nos deixa esquecer.
Na Zona da Mata, há muito tempo a floresta foi retirada do povo. Um território devastado pela monocultura da cana. A água falta. Chegamos numa comunidade que há quatro meses não via água chegar nas torneiras. Um problema estrutural numa cidade sem saneamento básico, onde falta muita coisa.
Ouvindo as histórias de Mestra Nice, entendemos que mesmo dentro de uma realidade tão embrutecida, o povo se junta para costurar e bordar fitas e lantejoulas, porque aqui o brinquedo é a possibilidade de alegria, beleza, graça e liberdade. Quer conhecer o fundamento da brincadeira? Então abra os olhos para o absurdo da desigualdade social desse país e para vivenciar como o nosso povo resiste e re-existe através de seus ritos e encantamentos. A vida real de uma grande parte do povo brasileiro não é instagramável.
Para viver as culturas populares e a ancestralidade que ela evoca em nós com seus brinquedos e manifestações tradicionais é preciso falar de políticas públicas, de garantia de direitos, de reconhecimento do racismo e do machismo estrutural e, principalmente, falar da falta de ética que é a desigualdade social no Brasil.
Num país tão abundante, com tanta terra (é muuuuitaaa terra), a concentração de renda nas mãos de uns 10% é a reprodução fatídica do colonialismo. Viajar pelo interior do Nordeste é sentir todo o peso colonial, o peso das relações exploratórias e racistas de trabalho e do completo abandono da população em situação de vulnerabilidade social.
Mas ainda assim, contudo e apesar de tudo… o povo segue fazendo festa, com a fome e a sede de quem faz a guerra. Os corpos ganham força, vitalidade, agilidade, liberdade de ser. O que esse povo não tem fora, ele cria dentro da roda.
As pessoas reflorestam seu imaginário nas cores e no brilho de seus brinquedos, na força de sua fé e devoção. Cria-se o belo e o colorido dos figurinos, dos chapéus, das máscaras. Dentro da roda abre-se um portal para um mundo de alegria, numa espiral do tempo que nos leva para outros mundos possíveis… quer seja por uma noite ou por uma sambada. É o que dá sentido pra seguir em frente.
Mas… que tudo isso não seja confundido com válvula de escape. Como muito bem ensina Mestra Nice Teles, que há 15 anos segue executando o projeto de oficinas “Cavalo Marinho Estrelas do Amanhã” com as crianças em situação de vulnerabilidade social de Condado: a brincadeira se faz no dia a dia, com educação popular, com acolhimento, vínculos afetivos e com comida no prato. Cuidar das “estrelas do amanhã” é acompanhar a vida dessas crianças, e devolver a elas a memória, o canto, a dança e a alegria de seu povo.
É reflorestar a mata.
NAZARÉ DA MATA – AMUNAM
A pandemia e os decretos de prevenção anti-Covid em Pernambuco nos impossibilitaram de acompanhar os ensaios do Maracatu Coração de Nazareno, em Nazaré da Mata, cidade conhecida como a capital do Maracatu. Mesmo assim, rumamos até lá para conhecer a sede do grupo, localizada na Amunam – Associação das Mulheres de Nazaré da Mata.
Além de apresentar o espetáculo “A fabulosa história da onça alembrada”, convivemos por um dia na associação, conhecendo o espaço, as atividades desenvolvidas e algumas das mulheres que lá trabalham, compartilham histórias, educam e brincam. Também participamos de entrevista na Rádio Alternativa FM, coordenada pelas associadas.
Fundada em janeiro de 1988, a Amunam nasceu com a proposta de lutar pelos direitos, desejos e sonhos das mulheres de Nazaré da Mata, buscando fortalecer o enfrentamento à violência doméstica. Um dos principais projetos é o Maracatu Coração de Nazareno, fundado em 2004. O grupo é o único Maracatu formado unicamente por mulheres, conta com mais de 70 integrantes de várias gerações e é uma grande referência para brincantes de todo o país.
Na sede da Amunam, que ocupa um grande casarão rosado no centro da cidade, as mulheres convivem, ensaiam e confeccionam toda a indumentária e os adornos necessários para brincar o Maracatu, além de criar os motes das loas que irão cantar a cada ano. Uma casa de sonhos e de resistência, que segue abrindo trilhas em espaços da cultura popular formados majoritariamente por homens.
De nossa passagem por lá, levamos inspirações e o desejo de retornar para brincar em tempos mais leves. Agradecemos, por todo acolhimento e partilha, à coordenadora e militante feminista Eliane Rodrigues, à produtora cultural e batuqueira Lucicleide Maria, à contramestra de Maracatu e artesã Cleonice Maria e a todas as mulheres que seguem reinventando brinquedos e suas próprias histórias.
OLINDA E DESPEDIDAS
Em Olinda, ponto final dessa passagem pernambucana, agradecemos a Hilton, Surama e Artur (Pousada Casa de Hilton) e a Bárbara Antunes (Espaço Jardim do Cajueiro), pelo acolhimento, carinho e cuidado. A Thayane Castro, pelo breve pouso e pelas partilhas sobre os movimentos culturais. A Mestre Ulysses e o Coco da Tabajara, pelos aprendizados nas sambadas. A Mariana e Jair, do Quilombo Semear, pelas trocas capoeirísticas cheias de inspiração. E a Marileide Alves, do Espaço Cultural da Xambá e Xeru Café, pelas guianças nas trilhas griôs.
Saindo de Pernambuco, o projeto Caravana das Alembranças faz uma breve pausa de três meses para recompor o fôlego e rumar para o seu próximo destino, em junho: o Maranhão!
Até lá, Dona Maria das Alembranças segue compartilhando seus destinos e alembretes estradeiros por outras paragens e encontros.
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